Читать онлайн книгу "Vida De Aeromoça"
Vida De Aeromoça
Marina Iuvara
A autora Г© aeromoГ§a e, tomando como referГЄncia experiГЄncias reais, consegue fazer o leitor respirar o ar dentro de uma companhia aГ©rea, fazer imaginar a vida de uma aeromoГ§a, em que o trabalho e a complexa organização da vida pГєblica e privada, por causa dos horГЎrios, turnos e partidas, se tornam quase um estilo de vida. Г‰ um livro que enfrenta o tema do engrandecimento pessoal e da mudanГ§a, por uma viagem ao longo de vinte anos, talvez atГ© mais, que verГЎ Anna deixar de ser uma garota ingГЄnua e cheia de sonhos para se tornar uma mulher e mГЈe consciente e realizada, que consegue se adaptar Г s inevitГЎveis mudanГ§as da vida, e acostumada com ter sempre uma malinha Г mГЈo enquanto perambula pelo mundo. Anna Г© uma aeromoГ§a que deixou sua terra natal, a SicГlia, para realizar seus sonhos: viajar, ser livre e independente. Cansada de enfrentar as severas regras impostas pelos pais e pela sociedade onde vive, a protagonista rebelde e passional um dia tem um pressentimento e compreende que sГі a profissГЈo de comissГЎria de bordo poderГЎ fazГЄ-la feliz e realizada. ComeГ§a entГЈo uma existГЄncia de “mulher com asas” que a repartirГЎ entre cГ©u e terra, entre paГses distantes a que muitos anseiam e a vida cotidiana com seus problemas comuns a qualquer mortal. Uma dicotomia que estГЎ na estrutura do livro, onde as lembranГ§as da protagonista, Г s vezes felizes e divertidas, Г s vezes tristes e dramГЎticas, sГЈo permeadas por histГіrias ocorridas em voos, “janelas” para o mundo fascinante da aviação civil, pouco conhecido, mas muito complexo e bem estruturado. TambГ©m estГЈo demonstrados “usos e costumes”, fornecendo informações sobre os “volГЎteis voantes”, como sГЈo chamados os membros da tripulação e, levando em conta episГіdios reais acontecidos durante o voo, consegue fazer o leitor respirar o ar dentro de uma companhia aГ©rea, fazer imaginar a vida de uma aeromoГ§a, em que o trabalho e a complexa organização da vida pГєblica e privada, por causa dos horГЎrios, turnos e partidas, se tornam quase um estilo de vida. Г‰ um livro que enfrenta o tema do engrandecimento pessoal e da mudanГ§a, por uma viagem ao longo de vinte anos, talvez atГ© mais, que verГЎ Anna deixar de ser uma garota ingГЄnua e cheia de sonhos para se tornar uma mulher e mГЈe consciente e realizada, que consegue se adaptar Г s inevitГЎveis mudanГ§as da vida, e acostumada com ter sempre uma malinha Г mГЈo enquanto perambula pelo mundo. Quais sГЈo os segredos de uma aeromoГ§a? O que acontece a bordo dos voos? O que fazem as aeromoГ§as quando chegam ao destino? Como sГЈo treinadas? Como Г© a vida particular de uma aeromoГ§a? Como faz para se organizar com tantas partidas? O que pensa durante a decolagem e a aterrissagem? Mas as aeromoГ§as tГЄm medo? O que lhes vem Г cabeГ§a quando surge uma emergГЄncia? Como lida com a bagagem? Como lidam com os passageiros mais difГceis? Quais sГЈo os defeitos dos passageiros? O que Г© a “pilotite”? Quais sГЈo os diversos tipos de abordagem a bordo? E quais os tipos dos passageiros? Quais sГЈo os conselhos para enfrentar uma viagem e o que colocar na mala? O que prevГЄ o “Manual de sobrevivГЄncia a bordo”? Neste livro, hГЎ respostas para essas e muitas outras perguntas.
Marina Iuvara
В© 2021 - Marina Iuvara
VIDA DE AEROMOÇA
O mundo Г© a minha casa
Tradução de André Spiller Fernandes (https://www.traduzionelibri.it/profilo_pubblico.asp?GUID=ca04cf7e9eb5292d3844f8d203a0cbc4&caller=traduzioni)
Obra protegida por direitos - todos os direitos reservados - é proibida a sua divulgação ou reprodução, total ou parcial, sem a expressa autorização.
Este livro é uma reformulação da primeira edição de “Vita da hostess” (sem tradução para o português).
Passaram alguns anos desde a primeira publicação daquele livro, e decidi renová-lo e complementá-lo.
Bem-vindos a bordo: this is the next flight.
Marina Iuvara
Anjos do ar
Mulheres independentes, de uniforme, perambulando pelo mundo.
ГЌcone glamoroso de liberdade.
Em sua maioria mulheres que exercem uma profissГЈo com peculiaridades Гєnicas, uma fonte inigualГЎvel de alegria e satisfação, mas tambГ©m cheia de facetas difГceis e reflexos muito importantes na vida pessoal.
As comissárias de bordo são tradicionalmente identificadas no imaginário coletivo pelo que é aparente: seus uniformes elegantes, escalas em todos os lugares do mundo, o contato com diversas pessoas ou as compras por toda a parte. É fácil encontrá-las nos aeroportos, junto do resto da tripulação: por vezes, são vistas ainda hoje com admiração e uma pontinha de inveja. “Eu gostaria tanto de ter esse trabalho também”, pensam em segredo muitos. Outros dizem o contrário: “Nunca poderia fazer isso”.
Na verdade, as aeromoГ§as - naturalmente, tambГ©m chamadas comissГЎrias de bordo - desempenham com eficiГЄncia e profissionalismo um papel exigente e sГЈo um componente fundamental para a seguranГ§a do voo, capazes de lidar, com tГ©cnica e paciГЄncia, com emergГЄncias de todo tipo. Devem estar sempre prontas para resolver os mais impensГЎveis e complicados imprevistos, mantendo, alГ©m disso, a distГўncia dos afetos e de casa, ou ainda a difГcil gestГЈo de seu tempo, alГ©m dos efeitos do fuso horГЎrio.
Neste livro, tentei contar os aspectos menos notГЎveis e dificilmente imaginГЎveis.
Dedico-o, portanto, a todas nГіs.
Introdução
A figura da aeromoça aparece pela primeira vez nos anos 30, em uma companhia aérea norte-americana.
No inГcio, a maioria duvidava da utilidade dessa função: frГЎgeis e graciosas garotas, com menos de 25 anos de idade, cujo peso nГЈo podia passar de 52 quilos e a altura nunca mais de 1,63m, vestidas com o mesmo uniforme, formadas em enfermagem e convidando os passageiros a ocuparem seus assentos com gentileza.
Sua figura e função mudaram muito ao longo dos anos.
Em 1940, depois do ataque a Pearl Harbour, as aeromoças foram alistadas em aviões militares para servir a pátria.
Em 1950, foi escrito o primeiro manual da aeromoГ§a perfeita: forte como um soldado, afetuosa como uma mГЈe, disponГvel como uma gueixa, bem informada como um guia turГstico.
Nos anos 60 e 70, as aeromoças inspiraram orgulho ao representar as companhias aéreas e foram comparadas a modelos.
Eram vistas como mulheres dotadas de beleza, desejГЎveis e invejГЎveis, com a possibilidade, ainda nГЈo disponГvel a todos, de viajar e conhecer o mundo.
Em 1960, no jornal New York Times, uma estatГstica norte-americana descreveu as aeromoГ§as como “mulheres perfeitas”, porque, ao caminhar 300 milhas para cima e para baixo entre as poltronas, parecem muito bem treinadas, comprovadamente resistentes ao cansaГ§o.
Com a chegada da revolução feminista e das conquistas posteriores em matéria de direitos das mulheres, em 1971, foi abolida a regra que as proibia de se casar. Em 1974, o salário foi equiparado ao dos homens. Em 1975, foi removida a proibição à maternidade e, em 1979, foram abolidos os limites de peso.
Até hoje, a responsabilidade principal de uma aeromoça é garantir a segurança dos passageiros a bordo das aeronaves, assim como servi-los durante o voo.
PrefГЎcio
Perfeitamente treinadas no campo da seguranГ§a aГ©rea, habilitadas e certificadas em primeiros socorros, competentes em lГnguas estrangeiras, hГЎbeis nadadoras, bem cuidadas, sorridentes e bem educadas, as aeromoГ§as devem ter, alГ©m de uma predisposição Г s relações interpessoais, um excelente equilГbrio emocional e um forte senso prГЎtico.
O estilo de vida Г© frenГ©tico, o trabalho Г© cansativo e estressante, tambГ©m por causa dos fusos horГЎrios; o ambiente onde trabalham Г© pressurizado, e o solo onde se movem durante o trabalho nГЈo estГЎ sempre na horizontal. No entanto, tГЄm autocontrole e devem estar sempre prontas para se virar em situações imprevisГveis.
As aeromoГ§as estГЈo em contato com pessoas de todas as etnias, culturas, nГveis de escolaridade, origens e caracteres.
Encontram crianГ§as esplГЄndidas como raios de sol ou, Г s vezes, tambГ©m mais turbulentas que as turbulГЄncias, pessoas de idade avanГ§ada com quem se deve lidar com tato e sensibilidade, personalidades que requerem discrição e segredo, homens de negГіcio, divas, grupos de turistas alegres e despreocupados, casais romГўnticos em lua de mel, doentes a cuidar, emigrantes de paГses distantes, proselitistas e catequistas de diferentes fГ©s. Todos devem ser tratados com cuidado e profissionalismo.
Elas devem gerir as incumbГЄncias urgentes antes da decolagem e da aterrissagem, observar as disposições de seguranГ§a enquanto realizam suas tarefas e obrigações, observar as hierarquias e zelar pelos muitos pedidos a satisfazer. SГЈo submetidas a longos e contГnuos perГodos longe de casa e a relações pessoais difГceis por causa das ausГЄncias impostas pelo trabalho.
SГЈo muitos os aspectos negativos desta profissГЈo Гєnica: pelo menos muitos dos que veem de fora nГЈo imaginam ou conhecem essas dificuldades.
Contudo, toda aeromoça, apesar de tudo, sente uma melancolia e uma nostalgia quando não está voando.
Lindos postais se guardam no pensamento a cada nova rota, e mesmo o voo mais difГcil Г© sempre uma experiГЄncia enriquecedora.
O sushi japonГЄs, a areia das Maldivas, os arranha-cГ©us de Nova York, a vida noturna argentina, a alegria brasileira, os cГ©us de Londres e os perfumes parisienses surgem no horizonte, ganham vida e trazem emoções Гєnicas, mesmo que em curtos espaГ§os de tempo, mesmo que cobertos pelo cansaГ§o do fuso horГЎrio, mesmo que sempre apressados pelo pouco tempo disponГvel.
Cada anoitecer se apresenta espetacular visto de cima, sobre as nuvens.
E a bordo dos aviГµes, acontece e pode acontecer de tudo: muitos passageiros se distinguem por sua classe ou estilo inigualГЎvel, alguns se mostram menos elegantes.
Pode acontecer que algumas pessoas percam o controle se estiverem nervosas ou estressadas: muitos precisam de apoio psicolГіgico porque sofrem de aero- ou claustrofobia. Excepcionalmente, alguns bebem demais e podem ficar violentos. Tudo pode acontecer durante o voo.
De fato, no avião, até o menor e mais insignificante episódio ou incidente pode se transformar em algo que demanda a máxima atenção.
Quem precisa de cuidados deve ser assistido imediatamente, e as emergГЄncias mГ©dicas sГЈo frequentemente resolvidas de maneira brilhante.
Em quase todo voo, acontecem experiГЄncias comoventes, que demonstram profunda humanidade e solidariedade.
Como se reconhece uma aeromoça?
- Verifique os objetos que ela tem em casa: nГЈo sabe o que sГЈo, para que servem, de onde vГЄm?
- Veja as fotos nas paredes: os fundos parecem ser de outro lugar no mundo?
- Pergunte se ela já provou o frango frito das ruas de Bangkok, frequentou os melhores restaurantes franceses ou provou o serviço de quarto na frente de um espelho em um hotel luxuoso.
- Preste atenção nos horários em que ela come ou dorme: estão de acordo com horários normais?
- Observe-a na hora das refeições: ela come em pé, mas não vê a hora de se sentar?
- Olhe na geladeira: ela pГґs copos de plГЎstico ao lado de garrafas de ГЎgua?
- Pergunte-a onde comprou alguma peça de roupa que veste: você também precisaria pegar um voo para comprá-la?
- NГЈo deixa de lado aquela calГ§a boca de sino na moda em Londres, conhece as datas das liquidações da Gap em Nova York, compra roupas da Gucci nos outlets de Miami, bolsas da Louis Vuitton nas liquidações de TГіquio, palmito na Argentina, suco de aГ§aГ, pГЈo de queijo e tapioca no Brasil?
- SГі faz luzes na sua cabeleireira preferida em SГЈo Paulo ou em MilГЈo?
- Tem certeza que os cremes de Tel Aviv e os shampoos orgГўnicos de Toronto sГЈo os melhores?
- Preste atenção: tira os saltos sempre que puder? (espie debaixo da mesa ou no carro).
- Olhe na sapateira: ela tem diversos saltos da mesma cor?
- Fala com muito conhecimento de lugares que vocГЄ sГі conhece na fantasia ou que precisaria de muitas vidas para conhecer?
- Pergunte qual Г© o lugar mais espetacular de todos os que ela visitou: o sofГЎ de casa fica em primeiro?
- Pergunte as Гєltimas notГcias sobre cultura e polГtica, mas principalmente as fofocas: ela sempre tem as Гєltimas novas?
- Veja o que ela guarda na bolsa: há objetos dos mais diversos, que te socorreriam em qualquer eventualidade (lixa de unha, livro, maquiagem, lanterninha, sombrinha, GPS, máquina fotográfica, laptop, calça extra, escova de dente)?
- Tem diversos números de telefone e contatos de colegas e conhecidos, mas não consegue lembrar o lugar, ano ou situação em que se conheceram ou conviveram?
- Sempre que sente cheiro de fumaça, verifica de onde vem e se levanta para procurar o extintor de incêndio mais próximo?
- Reconhece de cara a personalidade e o tipo social de qualquer pessoa e consegue se relacionar com qualquer um, independente de idade?
- NГЈo desanima quando precisa ajudar alguГ©m em dificuldade?
- Convive com os outros maravilhosamente em qualquer situação, mesmo que ame os momentos de solidão?
- Não sente nem um pingo daquele súbito nó no estômago que você tem quando o avião começa a decolar?
- VГЎ bisbilhotar seu quarto: sempre tem uma malinha de mГЈo Г espera de uma saГda inesperada? Consegue colocar nela tudo que possa ser necessГЎrio para uma semana inteira e nГЈo se atrapalha mesmo se tiver sГі uma hora para fazer uma viagem imprevista de Roma a Caracas?
- Se todas as respostas forem afirmativas, nГЈo tenha dГєvida: trata-se de uma "MULHER COM ASAS".
Bom voo
Como estavamos.
Volto para a minha terra, na sicilia, pelo menos duas vezes por ano, para as festividades e durante o periodo do verГЈo, turnos e fГ©rias permitindo.
Viajar no avião enfim é para mim normal, faz parte do meu trabalho. Ainda que passavam muitos anos, todas as vezes que chego, junto de um intenso cheiro da flor de laranjeira que espalham os pomares laranjais e o vento do sudeste proveniente de Africa, envolvem-me silenciosos mesmo as recordaçoes da minha infancia.
Hoje Г© uma quinta-feira de Julho: os trinta e seis graus estГЈo na regra.
Durante o verГЈo esta terra fica quente, luminosa e exposta ao sol: tudo parece mais lento e custa para manter um ritmo de vida dinГўmico por causa desta temperatura que eu gosto, mesmo sendo as vezes intrometido.
Os raios solares espalham-se sobre todo o espaço livre da pele, penetram até aos ossos, muitas vezes me robustecem, e as vezes deixam-me relaxar até atordoar-me para depois adormecer.
A pausa do meio-dia, usual nesta regiГЈo, interrompe a produtividade diurna. Escuto o som repetitivo e quase hipnГіtico das palas do ventilador, colocado em cima dum banco antigo; a sua brisa contrasta o ar quente e sufocante desta tarde de cГ©u azul, desprovido de nuvens.
ГЂ noite a temperatura sofre uma ligeira descida, e os amГЎveis ventos suaves aliviam o clima de noite.
Estou hospedada na casa dos meus pais e cada detalhe sobre a qual os meus olhos debruГ§am-se faz ressurgir na minha mente cenГЎrios vividos e recordados enfim longГnquos.
Antevejo uma saia interior de seda cor creme com delicados bordados de um tom ligeiramente mais claro, pendurada no guarda-vestidos estilo LuГs XVI que a minha mГЈe escolheu hГЎ mais de quarenta anos para embelezar o seu quarto que desde entГЈo ficou sempre o mesmo, inalterado ao longo do tempo; eu dei-me conta, pelo contrГЎrio, de ser tГЈo diferente desde quando me agachava debaixo dos cobertores daquela enorme cama para escutar as fГЎbulas narradas por ela antes de ir Г cama, e diferente mesmo desde quando, muitos anos depois, jГЎ adolescente, Г s escondidas conseguia experimentar os seus colares mais preciosos, espelhando-me naquela grande moldura dourada de um espelho, colocada no centro do quarto, enquanto danГ§ava de forma espontГўnea e folgada sozinha, como uma descarada, assim teria dito o meu pai, se me tivesse visto.
Lembro de ter possuГdo, entГЈo, uma saia interior de uma cor idГЄntica Г quela da minha mГЈe, eu gostava vesti-la pela sensação de ligeireza e frescura que me reconfortava durante os dias mais hГєmidos.
Na educação por mim recebida esta indumentária era permitido apenas em casa, e vestido tendo o cuidado de encostar as persianas, donde evitar indiscretos olhares externos, visto que a varanda apresentava-se sobre um grande pátio.
Induziram-me desde pequena para esconder-me, e para cobrir-me como deve ser, diante de qualquer pessoa.
Pouco a pouco vinham insinuadas gotas de castidade na minha alma, dia apГіs dia.
В«Cubra-te, cubra-te que alguГ©m pode te ver!В» chegava aos meus ouvidos se as vezes contemporizava no meu quarto vestindo, esquecendo de puxar as cortinas para fechГЎ-las.
Ainda hoje, antes de despir as roupas, verifico que tudo esteja fechado e que ninguГ©m possa ver-me, mas isto nГЈo o confessei por acaso nem para a Valentina, uma minha querida colega que com a qual durante anos partilho um apartamento, perto do aeroporto, na cidade onde actualmente resido: Roma.
Desde criança obedecia com escrupulosa atenção as regras, para evitar de sujeitar-me aos castigos, excessivamente severos muitas vezes.
Havia uma austeridade de ideias e hГЎbitos transmitida de geração em geração. A minha tia Carmela, apelidada por Lina, contava que a primeira vez que ousou dizer um palavrГЈo foi convidada a abrir a boca e tirar para fora a lГngua.
В«Que estranha brincadeira!В» pensou.
A sua mГЈe, a minha avГі Giuseppina, pegou um dos ganchos que recolhiam os seus cabelos compridos, e com ele espetou a sua lГngua.
Vistas as consequГЄncias, poucas entre filhas e netas da minha famГlia dizem palavrГµes, nГЈo obstante, nos momentos oportunos, lhes ocorre.
Estou aqui em Catania de férias por uma semana e encontro de novo os antigos sabores, cheiros, sensações.
Acolhe-me o solar sorriso da minha mãe, que se contem ao abraçar-me forte como queria, talvez por medo de esmagar-me.
Acaricia repetidamente os meus cabelos pretos como a pez iguais aos seus, compridos até mais abaixo dos ombros, deixados soltos para libertá-los das constrições das ataduras impostas pelas regras do meu trabalho.
A pele da mamГЈ Г© branca e delicada, mГіrbida como a areia, e cheira como pГ©talas de rosa, misturados a citrinos.
Sempre lhe pareço bastante magra – mesmo estando, do meu ponto de vista, pesada mais ou menos por aà um ou dois quilos, relativamente ao meu utópico peso ideal – por conseguinte convida-me para consumir aquilo que abundantemente coloca no meu prato.
Hoje preparou para mim, a sua Annuzza, os meus pratos preferidos: linguine (tipo de massa) a preto de sГ©pia e peixe-espada no cartucho.
Ela nГЈo se farta por acaso de me olhar e acarinhar-me, eufГіrica e emocionada ao Гєnico pensamento de ver-me de novo.
TambГ©m as minhas tias e primas demonstraram o seu afecto com todo o gesto todas as vezes que me viam, querendo ouvir tudo sobre as minhas viagens e sobre o meu trabalho.
Eu sou, no imaginГЎrio delas, uma parte do mundo delas que foi para um outro: aquele mundo feito de sonhos diante de uma revista, atraente todavia descrito como perigosa, tentacular, capaz de impelir-te irreversivelmente. Eu sou a prova viva de que o mundo sim, muda-te, mas permanecendo tu mesma, porque aquilo vai depender apenas de como Г©s feito por dentro. E elas sГЈo, para mim, a parte mais importante daquilo que aprendi durante todas estas viagens: que podes ir longe sГі se tens um lugar interior donde partiste, e onde regressar. Aprendi que poderГЎs estar em toda a parte, mas na verdade ficarГЎs sempre onde estГЈo as tuas raГzes emotivas.
Ficaram maravilhadas pelas fotos que tirei em New York e gostariam de partir comigo para visitar a Grande Maçã. Desejariam também que as levasse para Hong Kong para dar uma volta de passeio ao Starley Market e ao Lady´s Market, os mercados nocturnos dos quais falei para elas muitas vezes e com entusiasmo, ou passar da Casablanca onde existia a Medina com as suas cores e as suas especiarias, onde a hortelã para o chá tem um sabor mais forte e um cheiro mais persistente da nossa hortelã local, e saborear aquelas tâmaras excepcionais que lhes tinha oferecido regressado dum voo. Ou passear comigo nas ruelas fervilhantes de shanghai, mergulhados naquela enchente variegada e aquelas mil cores que tento descrever, e não consigo por ventura como gostaria.
Elas têm um grande sentimento de hospitalidade, uma arte natural de acolhimento transmitida no decurso de séculos, e me saúdam sempre com o habitual beliscão nas bochechas, atirando não próprio delicadamente de ambas as partes, e com um abraço seguido pela mesma frase desde quando era criança: Annuzza bedda, sangu mil!, Zzuceberu mil!
O meu pai, mesmo estando feliz vendo-me de novo, fica sempre muito silencioso, pouco comunicativo e extremamente reservado.
Temos a mesma cor dos olhos, azul celeste, mas nos seus uma ligeira tonalidade violГЎcea faz transparecer constantemente reflexos que as vezes me entristecem.
Ele é frequentemente inclinado a fazer previsões desfavoráveis, impregnadas de ânsia e preocupação, como a minha melhor amiga Stefania, também ela siciliana.
Г‰ um homem muito instruГdo, gosta de estudar e estГЎ sempre informado sobre todos os acontecimentos sociopolГticos actuais.
Discreto nos modos e formal no seu comportamento, fica durante horas fechado no seu escritório, mas na hora do almoço e do jantar junta-se a nós e todos juntos à mesa.
O que os meus pais, parentes e a sociedade onde vivi ensinaram-me Г© a grande importГўncia da famГlia, o respeito das regras e, em particular, o vГnculo inviolГЎvel do casamento: um valor para defender sempre, a todos os custos, frequentemente com enormes sacrifГcios.
Uma união para salvaguardar de todas as formas, mesmo na presença de problemas, que terão de ser superados ou combatidos, as vezes até ignorados.
Esta ligação indissolúvel tem um carácter sagrado absoluto que apenas a morte pode desatar.
AtГ© que a morte nos separe.
Uma promessa que nГЈo pode ser mais negligenciada, a partir do momento em que Г© estipulada.
Uma tarefa rigorosa e constante, oportuno para conservar firmemente as raГzes da famГlia.
NГЈo sГЈo somente o sentimento de afecto, a cerimГіnia oficial, o profundo dever que te Г© incutido com a educação desde crianГ§a, a ligar a relação matrimonial, mesmo o juГzo premente da sociedade onde vives te induz e trabalha assiduamente atГ© que se mantenha integra a ligação familiar.
No casal, a figura feminina tem um papel muito importante: a lealdade, para com o esposo e os filhos, Г© absoluta.
O homem dedica-se conduzindo melhor o papel de chefe da famГlia, tem a obrigação de tomar o seu cargo de tutela e de suporte da mesma.
Lealdade e obrigações, amor e respeito.
NГЈo importa se nГЈo for notГЎveis as duas Гєltimas rubricas, entendidas que possam enfraquecer-se.
O casamento é algo sobre o qual contar durante toda a vida, os filhos são o bastão da velhice, o fim não é permitido, ou apenas uma coisa de loucos, algo que vai fora da ordem pré-estabelecida, que é preciso evitar, encontrando qualquer remédio: no ritual do casamento a declaração da fidelidade é uma promessa que se honra, na sua forma absoluta.
Estas são as normas que me foram incutidas desde criança. Sobre o meu destino estava certa, teria respeitado estes ensinamentos.
Tive uma educação muito rГgida, feita de atitudes autoritГЎrios, ordens, obrigações e punições sem ter a possibilidade de replicar ou de pedir esclarecimentos, chegando, enfim na adolescГЄncia, para ter serias dГєvidas e confusГµes no que fosse realmente justo ou precisamente errado.
As rГgidas regras seguiam as directivas da educação que foi transmitido ao meu pai nos anos 40, sem se aperceber das profundas transformações sucedidas e dos movimentos dos anos 68, aos quais presenciei apenas com o meu nascimento.
Mesmo assim, a revolução social dos anos 70 parecia não alcançar minimamente a nossa realidade, nessa altura.
Tudo era preto ou branco, justo ou errado, concedido ou proibido e nГЈo existiam cores matizados, renuncias, meios-termos.
Os modelos e o estilo de vida acompanhados eram antiquados e ultrapassados, a meu ver.
Para mim o branco e o preto eram apenas os extremos de uma múltipla variedade de cores, contudo os ensinamentos deviam ser seguidos, sem réplicas e oposições.
A partir da orientação escolar e até às amizades, aos horários, aos lugares por frequentar, ao vestuário, ao desporto, todas as decisões seguiam pareceres, tendências e gostos não meus e nem sequer iguais às minhas inclinações: apenas àquelas do meu pai.
Ele deliberava as pessoas que podia frequentar, depois de uma cuidada selecção antecipada por uma conversa de apresentação inicial, cujos pré-escolhidos deviam sujeitar-se.
Questionei-me muitas vezes qual fosse o meu caminho, o que fosse realmente importante, quais os meus reais desejos e objectivos, e frequentemente as minhas respostas eram totalmente diferentes daquelas impostas pelos meus pais, que certamente agiam para o bem e para uma melhor formação da minha pessoa, espelhando somente sonhos: deles.
Seguia diligentemente as direcções sugeridas e frequentemente me encontrava ocupada a recitar um papel que certamente agradava aos outros, mas nГЈo a mim, e sentir nascer e desenvolver-se desejos que nГЈo representavam o papel que interpretava, e que nГЈo poderia desvendar, porque sabia que seriam mal suportadas: estava maravilhada pela liberdade e pela independГЄncia, pelas viagens e pelos lugares longГnquos.
Quase sempre tentei de fechar com a chave estes desejos e sonhos, como um caixote, com um grande cadeado, dentro de mim, dentro da minha mente, dentro do meu coração que batia forte por aquelas atracões que são consideradas bastante desinibidas e inconvenientes.
Os meus sonhos de viajar, querer viver no exterior, afastar-me da famГlia para ir viver sozinha, eram com frequГЄncia sufocados e desta forma os tinha bem aprisionados e escondidos: no interior daquele caixote nГЈo conseguia perceber grito nem dor causado pelo desgosto daquela renГєncia.
Estava orgulhosa por ter encontrado para eles um lugar seguro e, permanecendo naquele lugar tГЈo obscuro, nГЈo tinha a possibilidade de tomar conhecimento de forma consciente.
NГЈo desejava que as minhas verdadeiras paixГµes saГssem ao ar livre, a nГЈo queria que tГЈo-pouco existissem, na medida em que teriam arranjado apenas problemas, se por acaso tivessem sido tornados notГЎveis: nГЈo apenas teriam gorado as expectativas, mas, de todas as formas, nГЈo teriam tido vida fГЎcil e teriam sido decepados ao nascer.
O meu pai, advogado, estava certo que teria seguido as suas pegadas.
Vivi assim grande parte da minha adolescência sem grandes sofrimentos, e brilhantemente superava os problemas graças ao meu subtil procedimento secreto, isto é sufocando e escondendo os meus reais desejos e procurando satisfazer os outros.
Um dia, porém, uma das tantas gavetas ficou um pouco demasiado cheio e, para maior segurança e não sem esforço, experimentei colocar um outro cadeado.
De forma inesperada rebentou, abriu-se, ouvi gritos, choros, soluços como se fossem de uma criança, pedindo ajuda, suplicasse para sair, para ser ela mesma.
Tranquei ainda uma vez com força, aquela gaveta.
Mas aqueles sons e aquelas imagens tentavam sair e libertar-se.
Eram insuportГЎveis.
O meu coração batia cada vez mais forte para sobrepor-se em tudo e incapacitar-me para esquecer.
Era uma gaveta, apenas uma!
Tinha apinhado desta forma muitos sonhos, pensando assim de poder ser uma mulher serena e feliz.
Deveria preocupar-me?
O que teria acontecido se tivesse aberto escancaradamente tambГ©m uma outra vez, e depois talvez uma outra ainda?
A coisa aterrorizava-me, mas não posso não reconhecer que começou a seduzir-me cada vez mais.
Questionei-me, um dia, quem eu era realmente.
Questionei-me onde Г© que estivesse a ir e quem tivesse escolhido o meu caminho.
O que descobriria ao abrir aquelas gavetas?
Conseguiria reanimar a minha verdadeira essГЄncia reduzida Г agonia pelos condicionalismos externos?
Nunca estaria em condições de superar as minhas fraquezas e de encarar os meus medos?
Sou uma pessoa optimista, amo a vida; sou social e julgo importantes como fundamentais as amizades.
Entre mulheres, infelizmente, não é insólito instaurar-se de maçadores como inúteis sentimentos de inveja e de ciúme, por isso, chegar à especial solidariedade e à cumplicidade que tende realmente unidas torna-se extremamente raro.
Não é fácil encontrar uma verdadeira amiga, mas quando se tem esta sorte desaparecem orgulho e competição e nasce o respeito total, cresce a confiança cega e a lealdade.
A uniГЈo torna-se indissolГєvel, a amizade torna-se um bem por salvaguardar de improvГЎveis como raros e excepcionais acontecimentos negativos que teriam a forГ§a de enfraquecГЄ-la, mas que normalmente nada podem contra o agradГЎvel bem-estar que experimente estando unidos, confiando-se segredos mais Гntimos, partilhando as risadas, as experiencias da vida, as emoções, mesmo criticando-se mutuamente e encontrar soluções comuns: o objectivo principal Г© a uniГЈo e a forГ§a do casal.
ConheГ§o uma pessoa especial que espelha estas caracterГsticas. Stefania nГЈo Г© apenas uma amiga, as vezes assume-se como mГЈe que espalha conselhos, as vezes Г© a filha a quem dispensar o meu amor; pode parecer estranho, mas vГЄ-la interpretar o papel de namorada ciumenta nГЈo Г© improvГЎvel, sobretudo se a ignoro um pouco, mas ela permanece um ombro sobre o qual encostar, uma palavra de conforto, o respeito do meu silГЄncio, a compreensГЈo das minhas fraquezas, mas tambГ©m um doce peso por suportar.
Stefania tem um fГsico atlГ©tico, Г© muito alta, alguns centГmetros a mais que eu.
Os seus cabelos são castanhos e luzentes, com umas tonalidades tendentes ao vermelho carregado semelhantes àqueles da madeira de amaranto, muitas vezes colhidos numa trança que se move sinuosa nas suas costas. Veste-se habitualmente de forma casual, tem a predilecção pela prática no que veste; eu, pelo contrário, prefiro usar roupas mais femininas, a seu ver vaidosas e antiquados.
A sua exuberante sinceridade combinada com uma natural fraqueza conflui, as vezes, cruГ©is juГzos.
NГЈo obstante uma estrada de centenas de quilГіmetros agora nos separa, sei sempre de poder contar com ela, e vice-versa.
Nos suportamos, nos criticamos obstinadamente, nos proferimos opiniГµes, nos elogiamos e nos mandamos passear… sempre com grande afecto, e Г© difГcil, uma viver sem a outra.
A seguranГ§a recГproca torna especial esta verdadeira amizade, um ingrediente que normalmente escapa nas relações amorosas.
Nos une uma grande paixГЈo: partir lГЎ para metas distantes.
Sempre adorei viajar, me dГЎ um sentimento de felicidade.
Quando me distancio de tudo e de todos encontrando-me em dimensГµes e fusos diferentes Г© como se conseguisse avaliar o resto por fora: de longe, com efectivo destaque seja fГsico como mental.
Tiziano Terziani escreveu: a nossa destinação não é por acaso um lugar, mas um novo modo de ver as coisas: e é desta forma também para mim, ou melhor para nós os dois.
Viajando consigo reparar melhor dentro de mim, para ver com clareza quem sou, e para eu poder melhorar.
É como se o mundo com todos os seus problemas se distanciasse, mudasse de horizonte, e eu readquiro as minhas forças, as minhas energias.
Afastando-me da realidade rotineira, uma carga de adrenalina reforça-me tanto assim para me dar vitalidade e positividade enormes, ajudando-me a encontrar as respostas certas.
Viajar é uma invasão de mundos que não são os meus, é sempre uma satisfação que me proporciona um emocionante sentimento de liberdade, e me ajuda a descobrir de novo parte da minha autonomia.
Há algum tempo realizei aquele grande desejo que tinha desde criança: tornei-me uma hospedeira de voo.
Passaram anos, mas me lembro como se fosse ontem o momento em que decidi mudar a minha vida. Aquele dia estГЎ impresso na minha memГіria. Estava com Stefania.
Gostaria de ser aeromoça
Chega, estou farta! Mario estava insuportГЎvel, chega a me seguir atГ© quando vou tomar um cafГ© com as amigas. NГЈo quer que eu vГЎ para a aula e me proГbe atГ© de cumprimentar meu ex. Quero pensar mais em mim mesma e me tornar independente. Por que nГЈo criamos algo nosso e abrimos um negГіcio juntas? O que vocГЄ pensa para o futuro, Anna? O que vocГЄ gostaria de fazer?
Foi isso que me disse Stefania em nosso habitual encontro matutino para um cafГ© no “Bar das FinanГ§as” em frente a minha casa, infeliz com sua perspectiva de futura dona de casa, tГЈo desejada por seu noivo ciumentГssimo.
Nunca me tinha feito seriamente essa pergunta, nem tinha feito planos de carreira.
Depois de sair da escola e me inscrever na faculdade de direito, jГЎ que as matГ©rias cientГficas nГЈo eram para mim, procurei um trabalho como secretГЎria para me manter estudando e tentar satisfazer alguns pequenos caprichos.
Na Г©poca, acordava todos os dias Г mesma hora e, depois de um rГЎpido cafГ© da manhГЈ, me metia no trГўnsito caГіtico, enfrentando os 45 minutos de filas interminГЎveis nos semГЎforos e os barulhentos engarrafamentos nas rГіtulas, tentando poupar alguns minutos para chegar a tempo no escritГіrio.
Todo dia, na rua Barriera del Bosco, onde sempre ficava presa em um ponto especial de engarrafamento por pelo menos 15 minutos, eu encontrava com frequГЄncia um homem: um barbudo sempre sentado em um montinho de terra que ele fazia com as mГЈos.
Agachado sob a sombra de uma ГЎrvore, observava aquele interminГЎvel vai e vem, igual todos os dias.
O olhar daquele indivГduo tinha algo de sereno e vislumbrava uma realidade distante da sua: todos aqueles homens, mulheres e crianГ§as que passavam por ele, aprisionados em seus carros.
Ele era bastante discreto, como se nГЈo quisesse que percebessem sua presenГ§a a observar atentamente, admirado de encontrar sempre as mesmas caras nervosas e exaustas, os mesmos carros enfileirados um atrГЎs do outro, e todo aquele buzinaГ§o que soava como um protesto. Acho que pensava como seria difГcil para todos aqueles homens encontrarem a tranquilidade que ele parecia ter atingido.
Suas pupilas se moviam atentas e direcionavam olhares quase benevolentes e indulgentes a todos aqueles motoristas que, a sua volta, olhavam com compaixГЈo ou desprezo para ele e seus trapos jogados ao relento, muitas vezes Гєmido.
Todas as manhГЈs, eu me perguntava quem de nГіs dois era o doido, eu, a motorista nervosa, ou ele.
Eu pensava todas as noites sobre a pergunta que Stefania me fez sobre meu futuro.
A resposta chegou num fim da tarde, na hora de voltar do trabalho, dentro do meu carrinho, depois de ter evitado uma colisГЈo frontal com um idiota que cortou minha frente, ao fim de uma jornada de trabalho interminГЎvel, tendo de lidar com um chefe briguento e dado a abusos, com colegas que eu preferiria nГЈo ter conhecido, falsos e interesseiros.
No fim do expediente, saà da vaga que achei a duras penas pela manhã, que só consegui depois de ter brigado com outro mal-educado convencido de ter visto o espaço antes de mim, tentando me fazer desistir dela obstruindo meu ingresso.
Naquela tarde, percebi um pequeno arranhГЈo na lataria e limpador de para-brisas posterior desencaixado.
Todo dia, chegando em casa cansada, organizava a casa e preparava a janta com pressa, por causa daquela “fome famélica” que eu conseguia apaziguar pegando algum resto do dia anterior da geladeira e pedaços de queijo amarelados, porque mal colocados nas embalagens de plástico entreabertas.
QUERO VOAR! - Gritei de repente - Sim! Encontrei! Quero voar!
O que mais me seduzia era a possibilidade de evitar a rotina diária, o tráfego da cidade, ver sempre os mesmos rostos nos mesmos lugares. Gostaria de me relacionar sempre com pessoas diferentes, mudar de espaços, expandir meus pontos de vista, ter a possibilidade de perambular pelo mundo e me deliciar com a culinária internacional.
Pensei isso mastigando uma bolacha de ГЎgua e sal e a Гєltima azeitona no pote.
O sonho era voar, gostaria de ser aeromoça.
EntГЈo liguei para Stefania.
Stefania ficou entusiasmada com a ideia e me disse que também gostaria. Sua única preocupação era o noivo.
Um tempo depois, com os olhos brilhando e a página arrancada de uma revista, nos encontramos para ler com atenção e entusiasmo estas indicações:
Como se tornar comissГЎrio de bordo
“O comissГЎrio de bordo Г© sinГґnimo de confianГ§a e compromisso, estilo e cordialidade; grande capacidade de organização, tenacidade, resistГЄncia ao cansaГ§o e, sobretudo, vontade de trabalhar para os outros, entrando em contato com culturas e paГses diversos, dotes necessГЎrios para lidar melhor com o trabalho.
Nas seleções, busca-se praticidade, capacidade de se antecipar a e resolver problemas, capacidade de se relacionar, responsabilidade, autocontrole, estabilidade emocional, mente aberta e tolerância com o novo.
CaracterГsticas:
Idade entre 18 e 32 anos
Estatura mГnima: 164 centГmetros para mulheres, 172 centГmetros para homens
Escolaridade: nГvel mГ©dio completo
LГnguas: italiano e inglГЄs avanГ§ado, conhecimento de uma terceira lГngua preferГvel
Boas habilidades atléticas e de natação
Sem tatuagens visГveis”.
Tudo estava de acordo com nossas caracterГsticas e aspirações. PodГamos tentar, podГamos conseguir.
Vamos mandar nosso currГculo para a companhia aГ©rea o quanto antes – eu disse.
Dito e feito.
Stefania preencheu os formulários, apesar das ameaças veladas do namorado, e enviamos tudo juntas, anexando também fotos tiradas com diligência e atenção.
Eu nГЈo disse nada a meus pais, pois estava certa de que eles nГЈo aprovariam nem apoiariam minha ideia.
Vai, tira, tira a foto agora!
Escolhemos nossas roupas com cuidado: o look é importante nessas situações, e a roupa formal é a ideal.
Fecha a camisa, por favor.
Não, vira o rosto um pouco para a direita e segura os braços um pouco dobrados, com as mãos nas costas.
Depois de tirar os jeans rasgados, a blusinha vintage do mercadinho de quinta-feira e os tГЄnis rosa-shock de algodГЈo, pus um tailleur azul horrГvel que usei no casamento da ГЃgata, uma prima distante, e esqueci no armГЎrio por anos; uma camisa branca, meias-calГ§as cor de pele e sapatos de salto alto combinando com a jaqueta completavam o outfit.
Prendemos o cabelo com elГЎsticos pretos e muito laquГЄ, um pouco de maquiagem, um deslumbrante sorriso falso e fomos:
Vou bater a foto.
Perfeitas!
Depois de mais ou menos um mês, recebemos as cartas com o convite para participar das primeiras seleções.
Minhas pernas tremiam enquanto eu abria o envelope; Stefania quase desmaiou.
Aproveitamos para participar de um curso rГЎpido para relembrar o inglГЄs meio enferrujado.
Fui determinada a convencer minha famГlia pelo menos a participar da seleção: minha obstinação venceu. NГЈo conseguiram me impedir de ir e esperaram, como o noivo de Stefania, que eu nГЈo passasse nas provas.
Pegamos um aviГЈo para chegar a Roma, a cidade de nosso importante encontro.
Stefania precisava comprar uma roupa adequada para a ocasiГЈo. Escolheu um tailleur preto, apertadinho mas um pouco rГgido, pois seus movimentos ficavam pouco naturais e desconfortГЎveis nele. Eu arrumei o meu para que ficasse mais sГіbrio.
No avião, não era a primeira vez que olhávamos com devota admiração aquelas mulheres uniformizadas que andavam pela cabine com muita desenvoltura e profissionalismo, mas, daquela vez, senti um pouco de inveja.
Logo depois da decolagem, olhei pela janelinha.
Vi encolherem os mesmos carros que via enfileirados todas as manhГЈs enquanto ia ao trabalho e apertei forte a mГЈo de Stefania.
Passamos sem muito esforço em todos os testes da seleção, que durou diversos dias. Estávamos movidas por uma energia, determinação e entusiasmo inimagináveis, pondo de lado nossa timidez e mostrando até a nós mesmas uma desconhecida propensão à liderança.
A prova com o psicГіlogo foi, para Stefy, a mais difГcil.
Eu fui a primeira a entrar em uma sala iluminada onde encontrei um homem encarregado do último exame antes da minuciosa inspeção médica final.
Esse exame foi, para mim, um papo agradГЎvel e relaxante, mas percebi que o homem tentava me deixar constrangida enquanto eu tentava nГЈo ceder.
Eu estava feliz.
Inesperadamente e depois de uma breve conversa inicial de apresentação, ele alegou não acreditar que eu fosse aquela pessoa positiva, correta e sociável que eu descrevia. Respondi que sentia muito, mas aquilo não me preocupava, pois sua avaliação talvez resultasse de nossa conversa amigável.
Fui convidada a participar da prova seguinte.
Saindo, pisquei para Stefy.
Não há nada com que se preocupar. Vai tranquila – eu disse.
Stefania entrou logo depois.
Poucos minutos depois, vi-a sair muito sГ©ria.
Vai se ferrar, quem aquele mal educado pensa que Г©?
Stefania, o que aconteceu?
Não sei quem é ele, mas com certeza não quero nunca mais encontrar com um cara como aquele. Ele disse que meu cabelo é bagunçado e minhas roupas inadequadas.
Cabelo bagunçado? Roupa inadequada?
Que mal educado!
Como ele ousa?
Fez umas perguntas inoportunas, muito Гntimas, e eu respondi que nГЈo eram da conta dele. Depois, me disse: “mas quem vocГЄ pensa que Г©?” Naquele ponto, eu jГЎ estava bufando de Гіdio e respondi que ele deveria cuidar o que dizia. Depois, bati a porta na cara dele!
Era nossa teste de tolerГўncia ao estresse. Em um trabalho que envolve contato contГnuo com o pГєblico, essa Г© uma habilidade necessГЎria.
Nem preciso dizer que Stefania nГЈo foi convidada para a prova seguinte.
Voltou para casa chocada, perguntando onde tinha errado. Seu noivo foi o Гєnico que ficou feliz com o insucesso, e suas perguntas ficaram para sempre sem resposta.
Enquanto isso, eu comecei um curso que durou trГЄs meses, onde fui treinada para extinguir incГЄndios e como me comportar em caso de emergГЄncia.
Também estudei as questões técnicas de diversos tipos de avião e a composição da bagagem, alguns pontos de medicina para a habilitação em primeiros socorros e, depois de superar os exames de técnica, medicina e inglês, estava pronta para entrar em um avião na posição que tanto sonhei: a de aeromoça.
Durante o curso, conheci trГЄs garotas, e ficamos amigas: Eva, Valentina e Ludovica.
Dividimos o quarto de hotel durante todo o perГodo e, depois que assumimos o cargo, decidimos alugar uma casa em uma regiГЈo perto do aeroporto Fiumicino, nossa base.
Foi assim que começou nossa aventura.
Eu, Eva, Valentina, Ludovica
A casa tinha dois quartos, cada um com uma cama de casal, e o Гєnico banheiro estava sempre ocupado: difГcil encontrГЎ-lo livre, assim como o telefone de casa.
Tentamos nos adaptar Г quela situação e conseguimos conviver, nГЈo sem alguns pequenos desentendimentos, tentando chegar a pequenos compromissos (o mais difГcil era decidir quem lavaria os pratos sujos).
Eva tinha lindos cabelos ruivos, ondulados e sedosos que deslizavam pelas costas. Seus olhos castanhos claros pareciam verdes nos dias mais ensolarados, seu porte era ГЎgil e esbelto. Vinha do "alto BГ©rgamo", como ela dizia, e tinha o espГrito de "verdadeira napolitana", expansivo e caloroso. Amava a bagunГ§a, sempre tinha uma mГЎscara facial para experimentar e era frequente que perambulasse pela casa com a sua favorita, de argila verde. Usava Гіleo de amГЄndoas para deixar os cabelos mais sedosos.
Ludovica nunca parava de falar e nГЈo sabia fazer parar o palavrГіrio que nos atingia assim que abrisse a boca.
Era loira com lindos cachos, olhos intensamente azuis e uma pele lisa e clara. Suas curvas eram fartas e harmГґnicas. Muito organizada e meticulosa (o oposto de Eva), usava tailleurs de marca e guardava seus suГ©teres individualmente em sacos plГЎsticos transparentes. Cozinhava maravilhosamente.
Vinha da Sardenha e era noiva de um rapaz seu conterrГўneo que vinha com frequГЄncia ficar conosco, Г s vezes obrigando sua companheira de quarto, Eva, a dormir no sofГЎ.
Ludovica era doida por penteados.
Eu dividia um quarto com Valentina, que era uma moГ§a cheia de vida e entusiasmo, muito sensГvel, honesta e generosa.
Seus cabelos eram escuros e lisos, com corte chanel. Os olhos eram pretos, muito profundos e sensuais, e o porte fГsico era enxuto e bem modelado.
Valentina gostava de dormir tarde, melhor se a noite fosse acompanhada de seu drink favorito: Montenegro com gelo. De manhГЈ, demorava no banheiro porque as lentes de contato davam muito trabalho.
Г‰ramos muito prГіximas.
Hoje fomos convidadas para a festa de boas-vindas na casa daqueles pilotos que vivem na rua Masotta, perto de casa! – disse Eva.
Por que não damos um pulo? – eu disse.
Sim! – concordou Valentina.
Estou curiosa para conhecer nossos vizinhos.
Ludovica foi logo montar um penteado, e eu provei quase todos os vestidos do armГЎrio, me perguntando se eu algum dia conseguiria fechar o zГper lateral daquelas lindas calГ§as azuis. Eva usou seu novo Гіleo essencial de lГrio-do-vale, e Valentina correu para se maquiar.
Alegres, demos os primeiros passos em direção àquele mundinho à parte, até então desconhecido: o reino dos "voláteis", diferente dos meros "passageiros", como costumam distinguir aqueles que trabalham nos aviões.
O que logo percebemos "neles" foi a familiaridade com lugares que nós só sonhávamos em visitar e a facilidade que tinham de alcançá-los graças ao hábito de viajar; a capacidade de se adaptar em qualquer lugar do mundo, devida ao conhecimento da população e dos territórios, da cultura e das tradições; a profusão de amizades que conseguiam manter em diversos lugares, pois os frequentavam constantemente; a mente aberta, necessária para estar em contato com o mundo e seus habitantes, assim como muitas manias e fixações que cada um carregava consigo naquela segunda casa que era a mala de viagem.
Uma vez volГЎtil, sempre volГЎtil – disseram-nos baixinho, como se fosse uma verdade oculta, uma marca que carregarГamos para sempre.
Compreendemos que comeГ§ar a "voar" seria como viver duas vidas paralelas que vГЈo se alternando sempre que se sai para trabalhar. Г‰ como falar uma lГngua nova, incompreensГvel aos demais, onde o mundo Г© a sua casa, e a casa Г© o seu mundo.
Descobrimos que havia eventos quase todas as noites. Г‰ramos uma espГ©cie de grande famГlia que se reunia entre os que retornavam de voos e descansavam entre um turno e outro. Mas, se era preciso partir no dia seguinte, nos prometГamos ir dormir cedo para evitar aquela horrГvel dor de cabeГ§a e nГЎusea matinais que, no voo, ficam muito piores por causa da altitude e do ar condicionado.
Durante o trabalho, era necessГЎrio estar impecГЎvel. Os voos e os passageiros a enfrentar seriam uma dura prova, isso sabГamos bem.
Depois de ter assinado o contrato com a empresa, na grande sala de um majestoso edifГcio e, com grande surpresa, designado o destinatГЎrio do seguro de vida em caso de falecimento, constatamos emocionadas que logo nГіs tambГ©m serГamos voantes "volГЎteis"
O primeiro voo
O primeiro voo Г© inesquecГvel para todos.
Fui designada para um bate e volta em Paris. Eu estava emocionada, desajeitada ao entrar naquele aviГЈo completamente vazio, pronto para receber nossa bagagem antes dos passageiros. Finalmente, comecei a conhecer os segredos dos galleys, que sГЈo uma espГ©cie de cozinha de bordo onde estГЈo os fornos para esquentar as refeições, a geladeira para manter as bebidas frescas, todos os carrinhos com os mantimentos, a ГЎrea destinada ao lixo, os equipamentos necessГЎrios para o bom funcionamento do voo. Nessa ГЎrea, Г© preparado todo o serviГ§o antes que ele comece. Para as aeromoГ§as, Г© o lugar mais Гntimo, o Гєnico lugar suficientemente reservado, que permite alguns poucos minutos de distГўncia dos passageiros, graГ§as a uma cortina que concede alguns preciosos momentos de privacidade nos voos muito longos: as confidГЄncias e revelações geralmente vГЄm Г tona ali, no "baГє de segredos" das aeromoГ§as.
Verifiquei, além da bagagem, que tudo tinha sido limpo corretamente, que o serviço de catering tinha abastecido corretamente todos os carrinhos, os fornos e a geladeira, que os equipamentos e as luzes de emergência estavam em funcionamento.
Eu era o oposto de minhas colegas, tГЈo desinibidas e seguras nos movimentos, jГЎ veteranas, como se diz.
No curso, tГnhamos visto todos os alГ§apГµes, os carrinhos e as gavetas armazenados dentro do aviГЈo. Era uma infinidade, todos completamente cheios de materiais necessГЎrios para o bom andamento do voo.
Decidi abri-los todos para ver o que continham e memorizГЎ-los para utilizГЎ-los com mais rapidez.
Fechei-os e logo esqueci a posição e o conteúdo de todos, pois eram muitos, e todos idênticos quando vistos de fora.
Repeti isso vГЎrias vezes. ГЂs vezes a sorte me ajudava a adivinhar onde estava o que eu procurava, Г s vezes me rendia na busca de copos de plГЎstico depois de uma vitГіria parcial sobre os pacotes de cafГ© e leite em pГі. Acho que os tapa-olhos mudavam de lugar a cada voo, como se fosse um truque de mГЎgica: depois de encontrГЎ-los em uma gaveta, via-os em algum outro lugar.
Eu olhava minha saia que cobria o joelho, a meia-calça lisa e cor de pele que, até então, nunca tinha usado, os sapatos de salto alto, que combinavam com a bolsa, uma blusa bem engomada, lenço no pescoço, jaqueta frisada e o obrigatório crachá.
Tudo aquilo estava agora no meu corpo. Vesti aquele uniforme pela primeira vez, do jeito mais correto que consegui. Meu nome estava naquela plaquinha, o que era uma grande honra, e eu a usava com orgulho, entusiasmo, atГ© certa solenidade: era o inГcio de um sonho magnГfico.
Queria tirar outra foto e mandar para Stefania. O sorriso desta foto seria sincero, ao contrário daquele nas fotos tiradas para a seleção. Além disso, diria que sentia saudades dela e que gostaria que ela estivesse comigo.
Naquele momento, o nervosismo e a emoção do primeiro voo me deixaram dura.
A cor da jaqueta do uniforme era muito parecida com a das poltronas, e eu me sentia mais próxima delas do que de uma aeromoça "de verdade".
Felizmente, tudo ocorreu bem e, acredito, ninguém percebeu minha apreensão durante todo o voo. Talvez tenha aparecido durante minha primeira demonstração dos procedimentos de segurança.
Todos os olhos estavam sobre mim, e eu nГЈo estava preparada para enfrentar de maneira natural aqueles inГєmeros olhares que se voltavam para mim.
Senti um rubor nas faces, e as mãos começaram a suar, a tremer um pouco, quando demonstrei como afivelar o cinto de segurança.
Nunca tinha tido nenhum problema para encaixar fivela metГЎlica na fenda, mas, naquela situação, ficou difГcil. Tentei segurar o tremor dos dedos que me impedia de encontrar o buraco certo.
Já com o suor escorrendo, consegui terminar aquela estranha demonstração, como uma dança seguida de movimentos de mãos.
Sentia-me como uma atriz em um filme mudo que seguia o texto lido e transmitido pelos alto-falantes do avião, enfatizando com gestos as instruções dadas.
Durante os anГєncios de boas-vindas, foi estranho ouvir minha voz ecoar por todo o aviГЈo, e sГі depois de muitos voos fui conseguindo modulГЎ-la melhor, tentando evitar inflexГµes dialetais, principalmente o "Гі" aberto. Os anГєncios deviam seguir uma fonГ©tica estrita e fechada, e que eu precisava sempre repetir:
“Buongiòorno, benvenuti a bòordo.”
“Benvenuti a Ròoma.”
Dei-me conta de que apertando as bochechas e fechando a boca um pouco, contraindo os lábios e evitando as nasalizações, conseguia encurtar o som:
“Buongiòorno”, “bòordo” e “Ròoma” finalmente viraram “Buongiorno”, “bordo”, “Roma”.
Depois de um voo domГ©stico entre Roma e Bolonha e uma viagem internacional logo em seguida de Bolonha a Paris, cheguei ao destino final, embora aquele maldito "Гі" ainda me acompanhasse.
Depois da despedida dos passageiros, um Гґnibus me levou para o hotel e, como sempre acontecia, depois de feito o check-in, combinamos de sair para jantar juntos.
Nos vemos Г s 20 horas, nada muito formal.
Foi o que me disseram os colegas antes de ir para o quarto trocar de roupa.
Aprendi por minha conta que Г© importante ser pontual.
Eu estava feliz por estar em boa companhia e por estar sendo guiada por eles, que conheciam bem a regiГЈo.
TerГamos jantado no famoso restaurante "La Coupole", na Boulevard Montparnasse, conhecido pelo entrecГґte e um bom vinho tinto.
Eu teria provado avestruz com o aperitivo, e teria tirado muitas fotos para lembrar a ocasiГЈo. Teria mostrado as fotos para Stefania, minha mГЈe, meu pais, minhas primas. Eu teria sido a princesinha parisiense jantando em um famoso restaurante francГЄs na companhia de pessoas que viajavam, que conheciam o mundo e viviam em hotГ©is luxuosos. E eu junto a eles, fazia parte daquele sonho que virava realidade.
Achei que nГЈo deveria chegar bem no horГЎrio combinado no saguГЈo do hotel, pois "uma senhora deve sempre se fazer de difГcil". Era assim de onde vim.
Aprendi que "uma colega" nГЈo pode fazer isso, porque aquele "nada muito formal" significa: "MГЎximo de cinco minutos de atraso permitidos".
Jantei sozinha na lanchonete do hotel, que sГі servia sanduГche na chapa: comi um croque monsieur de presunto e uma Гіtima soupe d’oignons, vulgarmente conhecida como sopa de cebola. Aqui, tudo era diferente, atГ© a sopa.
Na Г©poca, eu nГЈo era acostumada a comer sozinha em restaurantes e estava envergonhada pela situação. Escondi o embaraГ§o com um livro do Hemingway aberto ao lado do prato e o celular em mГЈos. As mesinhas eram tГpicas, pequenas e prГіximas umas Г s outras. Ao meu lado, estava uma senhora elegante com cabelo preso, vestindo um conjunto da Chanel.
Na manhã seguinte, depois de visitar a torre Eiffel, uma parada rapidinha pelo Arco do Triunfo e as vitrines cintilantes da Champs-Élysées, almocei apressada no renomado “Relais de Venice” na rue Pereire, e não deixei de passar pelo cabeleireiro "Carita", especialista em makeovers, que cortava o cabelo depois de ter estudado os traços da pessoa e adaptando-o ao formato do rosto.
Uma ilustre colega "entendida", que tinha um corte espetacular e que conheci em trГўnsito no aeroporto, foi quem me aconselhou o local.
Nunca confie cegamente nos conselhos das colegas. TambГ©m aprendi essa.
Com uma franjinha horrГvel sobre a testa e a conta bancГЎria quase zerada (por sorte eu tinha um cartГЈo de crГ©dito, e o champanhe e os canapГ©s de salmГЈo eram cortesia do cabeleireiro), voltei para o hotel bem na hora de pГґr o uniforme, tentar esconder a franja com gel e fechar a mala que, sabe-se lГЎ por que, na volta parece nunca ter a mesma capacidade da vinda, e nenhum voo Г© exceção.
Desta vez, a falta de espaço era por causa do chapéu retrô que, embora fosse quase certo que nunca conseguiria usar, me fez sonhar e, portanto, não resisti e comprei, depois de tê-lo visto no mercado de pulgas de Saint Queen.
Uma colega do voo me disse que tinha ido para a loja de departamento Lafayette e para outra loja na rue du Bac onde se encontram de sofГЎs de P. Starck a lanternas de bolso do tamanho de uma pilha, de sacolas de compras extravagantes a armГЎrios feitos de corda e botГµes. Anotei para ir da prГіxima vez que estivesse na cidade.
Logo depois da aterrissagem, os colegas prepararam o "happy landing" em minha honra, um drink Г base de espumante e suco de laranja para festejar minha "primeira vez".
Voltei para casa lГvida, pronta para mostrar meu chapГ©u novo para a Eva, a Гєnica que apreciaria a compra e que seguramente o pediria emprestado. Pelo menos ele seria usado.
Valentina dormia na cama, exausta de um voo longo e despreparada para a súbita mudança de fuso horário e de temperatura.
Em Buenos Aires, é inverno quando na Itália é verão, e a diferença de fuso é de quatro horas.
Seu corpo achava que era noite, pois estava acordada há treze horas (mais ou menos a duração do voo), mas a luz do sol e aqueles raios tão prepotentes diziam que era hora do almoço, o que era estranho, já que tinha comido a janta no voo poucas horas antes.
Naquela noite, nГЈo conseguiria dormir. Infelizmente, eu tambГ©m nГЈo, jГЎ que dividГamos o mesmo quarto.
A maquiagem borrada no rosto de Ludovica e seus cachos, que pareciam rebelar-se contra as presilhas exaustas que os continham, confirmavam que ela também precisava de repouso. Suas pernas estavam inchadas como dois pãezinhos por causa da pressurização do avião.
Não é surpresa que seu noivo "não volátil", como todos os futuros maridinhos das aeromoças, iria querer sair na manhã seguinte para um passeio com a amada, que não via com frequência. A hora do almoço seria ideal para almoçar, de tarde um passeio pela cidade e, que grande ideia: "um cineminha depois?"
TambГ©m seria inГєtil tentar explicar a necessidade de um longo repouso, nГЈo importava o horГЎrio que fosse no meridiano de Greenwich.
Г‰ difГcil explicar ao namorado que nГЈo saГmos de fГ©rias e que aquelas poltronas macias e reclinГЎveis, com lugar para apoiar os braГ§os, era para os passageiros, nГЈo para as aeromoГ§as. TambГ©m inГєtil dizer que nГЈo tivemos tempo para assistir ao filme que projetam.
Trabalhamos por muitas horas e chegamos exaustas.
Abro a geladeira e jГЎ consigo sentir o gosto do lombo que Valentina trouxe da Argentina e guardou no gelo seco durante o voo.
Na cozinha, vendo a nova faca de cerГўmica e os saquinhos de chГЎ verde, adivinho a causa da rebeldia dos cachos de Ludovica: o voo para TГіquio dura pelo menos doze horas, nem mesmo seus penteados sempre impecГЎveis resistiram. Ludovica, antes de se despedir para o tГЈo necessГЎrio repouso pГіs-voo, deu suas impressГµes sobre aquela cidade tГЈo frenГ©tica que contrasta com a delicadeza de seus habitantes, com aquela extrema timidez que os leva Г s vezes a rir cobrindo a boca, com seus milhares de reverГЄncias ao saudar alguГ©m. Ficou impressionada com aqueles vertiginosos arranha-cГ©us, com as multidГµes de carros e pedestres nas ruas, com a escrita incompreensГvel dos ideogramas japoneses. Contou que foi ao mercado de peixes de Tsukiji, o maior do mundo, tГЈo limpo e organizado, que viu papelarias de nove andares e bares que comportam no mГЎximo cinco clientes. Contou que se perdeu em Harajuku, um quarteirГЈo de moda na pequena rua Takeshita, entre pequenas lojas da moda frequentadas por jovens com roupas extravagantes. Descobriu que existem restaurantes chamados Maid CafГ©, onde as atendentes escolhem um cliente e demonstram sua submissГЈo, o massageiam e entretГЄm com danГ§as e canções, como as antigas gueishas. Nos Butler CafГ©s, os mordomos atendem mulheres de modo similar. TambГ©m nos contou que os preГ§os de mГЎquinas fotogrГЎficas e filmadoras novas eram muito bons, mas que tambГ©m era possГvel encontrГЎ-las usadas em perfeitas condições, bem como as Гєltimas tecnologias que nem tinham chegado Г ItГЎlia. Disse tambГ©m que os relГіgios de marcas famosas custavam atГ© 35% menos do que nas lojas italianas, e que era possГvel encontrГЎ-los usados tambГ©m. Disse, por fim, antes de cair na cama de cansaГ§o, que, em um restaurante chamado Al dente, o espaguete era espetacular, quase melhores do que os italianos, e que adorou a massagem com quiroprata que fez em Shinjuku.
Aprendemos algumas regras simples mas necessГЎrias, que eu anotei em uma folha de papel e prendi na geladeira com o ГmГЈ que Valentina comprou em Buenos Aires, com dois danГ§arinos de tango e a frase “Bienvenido a Argentina”, o primeiro de uma sГ©rie de ГmГЈs que vinham de todas as partes do mundo que acabaram enterrando a geladeira e escondendo aquele lembrete que no comeГ§o foi muito Гєtil para todas nГіs. Nos anos seguintes, passou a fazer parte de mim.
Ele dizia:
"O que nГЈo fazer:
NГЈo dar a impressГЈo de estar com pressa.
Nunca falar com os colegas sobre assuntos pessoais durante o serviço.
Evitar expressões de irritação ou mau-humor, assim como comportamento inconstante.
Tentar evitar frases imperativas como 'Feche a mesinha!', 'Cinto de segurança!' ou 'Celular!', mas convidar gentilmente o passageiro a seguir as ordens.
NГЈo falar com os colegas em voz alta.
Tentar encontrar lugares próximos para pessoas que viajam juntas, fazendo eventuais trocas de assento, e sugerir que cheguem ao check-in com alguma antecedência para ter mais opções de assento.
�Lembrete’
A- Requisitos básicos: capacidade de garantir a segurança a bordo, responsabilidade e profissionalismo.
B - O passageiro precisa de conforto psicológico, proteção do estresse e do medo de voar.
C - Não pode faltar: cortesia, atenção e disponibilidade durante toda a duração do voo.”
Compreendemos, com o tempo, que nosso comportamento Г© fundamental para resolver problemas a bordo. Alguns inconvenientes eram alvo de crГticas dos passageiros e exigiam alguma intervenção. Conseguir comunicar-se claramente e tentar resolver as dificuldades e problemas que apareciam a bordo nem sempre era fГЎcil. Era sempre necessГЎrio levar em conta a gravidade do problema, o contexto, o carГЎter e o estado emocional do indivГduo com quem nos relacionГЎvamos, porque nГЈo se conhece nunca a pessoa com quem nos relacionamos a bordo, as situações que poderiam acontecer e as possibilidades de agravamento que poderiam surgir posteriormente.
Com calma e determinação, era fundamental ajudar, transformando o problema do outro em problema nosso, apresentando-se como uma referência segura, compreendendo as razões do ocorrido para resolvê-lo.
Era importante ouvir o que dizia o outro, mas tambГ©m olhar a situação de maneira objetiva, informar e explicar com sensibilidade e responsabilidade, indicando com transparГЄncia as possГveis soluções.
Com frequência, a insatisfação do cliente era influenciada por fatores externos, como atrasos, conexões complicadas, embarques desordenados, aviões desconfortáveis ou serviço de limpeza apressado. Portanto, um comportamento compreensivo e propositivo podia ajudar a resolver os problemas.
Medo de voar
Em um dia de outubro, Eva ficou insuportável depois das discussões que costumávamos ter sobre a arrumação da casa, porque as repreensões eram majoritariamente voltadas a ela.
Eu ouvia os palavrГµes e as coisas que ela dizia em napolitano, que contrastavam tanto com seu falar comumente desprovido de inflexГµes dialetais.
Seriam as radiações cósmicas, os campos magnéticos ou o barulho dos aviões responsáveis por aquela mudança de humor?
No meio-tempo, Ludovica decidiu marcar uma massagem ayurvédica para fortalecer os músculos, relaxar o corpo e estimular a circulação com a esteticista indiana que alugou um espaço na vizinhança, e nos informou que, a partir de segunda-feira, estaria de dieta, pois Eva tinha dito que ultimamente parecia ter ganhado peso.
Eu estava aninhada no sofГЎ, com roupas de ficar em casa e um suГ©ter bege masculino; uma coberta sobre as pernas me protegia dos primeiros ventos do inverno, e eu tentava ter um momento de relaxamento.
NГЈo conseguia dormir porque a adrenalina do pГіs-voo ainda nГЈo tinha passado.
De repente, me veio a lembrança do dia anterior.
Eu tinha conhecido a bordo o casal Lucherini: a senhora Lucrezia e o doutor Massimo.
Durante o embarque, logo percebi alguns sinais de tensão em seu comportamento. Eles começavam a tomar assento, com as costas um pouco recurvadas, caminhando rigidamente, com o queixo baixo e uma atitude passiva e dócil.
Os braГ§os dele estavam retos e estendidos rigidamente ao lado do corpo, os dela estavam cruzados, quase se protegendo instintivamente, e ambos olhavam ao redor, como se estivessem procurando algo, uma forma de escapar. As pupilas de ambos estavam completamente dilatadas, como se sofressem de midrГase.
Os movimentos do corpo eram lentos, e eu percebia que eles me direcionavam um leve sorriso, que eu retribuГa com graГ§a.
Estavam rГgidos na poltrona, apoiados na borda externa da cadeira, com um pГ© para frente e outro para trГЎs, como se quisessem escapar. Mudavam constantemente de posição, como se a poltrona estivesse em chamas.
Meu responsГЎvel, que parecia um sГіsia de James Dean, sempre alegre mas com uma tristeza quase imperceptГvel no olhar, me fez um sinal para cuidar deles.
Aproximei-me do casal, perguntando se precisavam de minha assistência, e a senhora disse que não, enquanto sua cabeça dizia sim, e começou a balançar o busto, prendendo a respiração como se não quisesse ser notada.
Logo me dei conta da situação. A senhora sofria de um distúrbio bastante comum, que cria diversos problemas e ataca de forma indiscriminada: o medo de voar.
Eu tinha aprendido no curso como me comportar nesses casos: o medo excessivo pode degringolar em pГўnico, o temor pode ficar insuperГЎvel e levar atГ© Г total perda do controle.
Os sintomas são vertigem, náusea, nó na garganta, palpitações, suor frio, taquicardia.
Embora eles nГЈo tivessem pedido, dei alguns conselhos sobre o que fazer caso sentissem algum mal-estar. Reprimir o nervosismo sГі o aumenta. Deve-se, no lugar, aceitar os prГіprios medos e enfrentГЎ-los de forma positiva, para conseguir geri-los e controlГЎ-los.
AlГ©m disso, sugeri que nГЈo tomassem nenhuma cafeГna, lessem um bom livro ou fizessem uma palavra-cruzada para manter a mente ocupada.
Durante a decolagem, vi seus rostos empalidecerem, e a chamada de comissГЎrios acender sobre eles.
Depois de tirar o cinto de segurança, fui averiguar a situação.
A senhora começou a se soltar:
Desculpe se a incomodo - disse timidamente -, mas gostaria de informar que estou aterrorizada. Qualquer movimento que sinto, tenho a impressão de que meu estômago se parte em dois. O problema é que o poço de ar me provoca sensações desagradáveis. Preciso pegar o avião para encontrar com minha mãe, que já está muito velha, na Alemanha, então não posso evitar.
Vi que ela passou a mão pelos cabelos e começou a enrolar um cacho freneticamente.
O marido aproximou-se dela, como se quisesse confortГЎ-la, um pouco duro e desajeitado, os lГЎbios contraГdos e as mГЈos suadas. TambГ©m dava sinais claros de desconforto.
Os temporais são perigosos? - perguntou baixo, engolindo pedaços das palavras e mexendo os músculos faciais continuamente.
O marido começou a tamborilar com os dedos na mesinha à frente.
Com o tom seguro e decidido, disse:
NГЈo, tudo estГЎ sob controle, nГіs nГЈo terГamos partido se houvesse qualquer perigo. Tudo estГЎ sob controle – repeti. – A chuva nГЈo vai criar nenhum problema para nossa seguranГ§a. As sensações desagradГЎveis que os senhores sentirem serГЎ por causa do vento, que causa uma oscilação absolutamente normal.
Voltei ao galley para organizar o serviço com meus colegas.
A senhora me seguiu logo depois.
Por favor, me ajude. Estou com vontade de gritar e chorar. Todo voo é uma tragédia, e eu começo a ficar nervosa um mês antes da viagem, só de pensar em fazer a mala. Morro de vergonha disso, mas não sei o que fazer, gostaria de desaparecer! – ela implorou com fervor e humildade.
Fique tranquila, a senhora pode ter a impressão de que o avião dá solavancos, mas isso é só fricção.
Fui me aproximando lentamente, atГ© que cheguei a seu lado, sem hesitar.
Falando baixo, de modo claro e escolhendo bem as palavras:
Não se preocupe, eu estou aqui – disse levemente recurvada, aproximando-me dela para tentar dar o apoio desejado e tentando diminuir seu embaraço e aquele nervosismo.
Eu respeitava aquele medo irracional e compreendia o desconforto.
Apertei seu braço com firmeza, segurando-a delicadamente com as duas mãos, e olhei em seus olhos para estabelecer um contato mais próximo.
Acompanhei-a de volta ao seu assento.
A senhora parecia minha mГЈe: mesma idade, muito educada, aparentemente frГЎgil. Foi fГЎcil entrar em sintonia com seus sentimentos.
Durante o voo, passei pela cabine diversas vezes, trocando olhares com ela para tranquilizГЎ-la.
Ela me chamou de novo quando houve mais uma turbulГЄncia, e eu tentei sanar aquelas dГєvidas e temores que persistiam e transpareciam na postura sempre rГgida.
Disse que a seguranГ§a do aviГЈo Г© de altГssimo nГvel, que os controles tГ©cnicos e a manutenção sГЈo contГnuos e que os pilotos sГЈo perfeitamente treinados.
Durante a preparação para a aterrissagem, ela me perguntou, com uma tranquilidade fingida:
SГЈo normais esses barulhos ou hГЎ algo de errado?
Expliquei a ela de onde vinham todos os barulhos que poderiam causar desconfiança: o posicionamento do trem de aterrissagem, a abertura das escotilhas, a aceleração e as variações dos motores, a abertura dos flaps e slats, o toque do nosso microtelefone, os avisos de chamada dos passageiros.
Senti que ela gostou de saber daquilo, mesmo continuando a roer as unhas inconscientemente.
Aconselhei que ela inspirasse e expirasse profunda e lentamente para oxigenar o corpo e relaxar os músculos, adicionando algumas técnicas de visualização positiva para auxiliar no relaxamento.
A senhora agora parecia sentar-se com mais conforto, mais Г vontade, assim como o doutor Lucherini, embora em seu rosto ainda houvesse uma expressГЈo incerta, um pouco de fingimento, com o lado direito do sorriso um pouco mais alto do que o esquerdo.
Você é nosso anjo dos céus – disse.
Na descida, houve apenas algumas leves turbulГЄncias devidas ao mau-tempo, e o voo terminou com uma aterrissagem macia.
Senhoras e senhores, bem-vindos. Desejamos uma estada agradГЎvel.
Chegamos no horГЎrio exato a Frankfurt.
Antes de sair, a senhora me deu um abraço discreto e elegante e me agradeceu.
Eu que estava grata por sua gentileza.
O marido apertou minha mГЈo com vigor e a forГ§a recuperada, demonstrando a classe que eu reconheci desde o inГcio.
AtГ© logo!
Estas são as lembranças que nos vêm de súbito quando estamos tentando descansar em casa. De repente, ouvi a porta bater.
Eva havia saГdo.
Pus a coberta sobre o rosto para evitar a luz que entrava pela janela.
Chegara a hora de relaxar. Eu estava quase dormindo, perdida nos pensamentos, achando que voar, ficar preso dentro de um aviГЈo, pode nГЈo ser nada natural, portanto, desenvolver medos inconscientes Г© perfeitamente compreensГvel. Lembrei naquele momento histГіrias do meu passado. Compreendi como elas podem nos influenciar por praticamente toda a vida.
A adolescГЄncia
Desde jovem, ter pouco tempo disponГvel sempre foi motivo de sofrimento, porque me sentia prisioneira dos poucos espaГ§os pessoais e dos breves momentos de liberdade, jГЎ que devia respeitar rigorosamente os horГЎrios impostos de forma atenta.
Eu nГЈo era dona do meu tempo.
Lembro que, atГ© os 18 anos, precisava voltar para casa no mГЎximo Г s 11 da noite, nos poucos sГЎbados em que me permitiam sair.
Meus amigos se reuniam Г s nove para decidir onde comer, entГЈo nunca conseguГamos sentar Г mesa antes das 10.
Eu sempre tinha pressa, ficava nervosa se o garçom demorava para chegar, não conseguia aproveitar a companhia dos outros porque sabia que precisaria voltar para casa logo.
Só me sobrava tempo para fazer o pedido, na esperança de que um atendimento rápido permitisse pelo menos que eu saboreasse aquela pizza, mesmo depois de perder o apetite, pois meu estômago começava a ficar tenso, e os sucos gástricos se misturavam com a agitação.
De qualquer forma, eu me levantava da mesa jГЎ atrasada para voltar para casa no horГЎrio estabelecido.
Era sempre difГcil convencer alguГ©m a interromper a janta para me acompanhar, mas o horГЎrio de retorno era inderrogГЎvel e categГіrico, e eu nГЈo tinha nenhum meio de transporte.
No trajeto para casa, eu implorava para que nenhum limite de velocidade fosse observado. ГЂs vezes as luzes vermelhas do semГЎforo eram simplesmente ignoradas.
Eu morria de medo de correr no carro, e esse medo permanece comigo atГ© hoje. Eu Гі via as luzes noturnas passarem voando por mim; os farГіis dos outros carros e os postes ficavam para trГЎs muito rapidamente.
Era o preГ§o a pagar para evitar as humilhações e repreensГµes na minha volta. Se eu saГsse da linha, encontrava a porta da frente fechada por dentro e precisava inventar qualquer desculpa para nГЈo precisar ver aquela careta ameaГ§adora de meu pai, enfurecido com minha desobediГЄncia, com minha falta de respeito, alГ©m de certamente preocupado.
Intimidações e punições vinham na forma de gritos, surras e novas proibições ainda mais rГgidas.
Tudo isso sГі pelo atraso de poucos minutos.
Poucos minutos.
Com certeza meu pai foi severo demais.
Lembro o dia em que eu estava muito feliz por ter conseguido permissГЈo para ir Г festa de aniversГЎrio de minha melhor amiga. Foram dias tentando convencГЄ-lo.
Iria encontrar um rapaz, colega de classe, de que eu gostava muito.
Como eu precisava deixar minha roupa de acordo com os padrões de meu pai (talvez rigidez de meu pai fosse mais apropriado), a saia não podia ser muito curta, nenhuma peça de roupa justa e sapatos sem salto. Então, decidi provar uma maquiagem que ganhei de presente.
Minhas mГЈos inexperientes exageraram nas bochechas, aquele blush tГЈo rosa e tГЈo agradГЎvel aos olhos, aquele batom tГЈo brilhante, tГЈo vermelho, faziam eu me sentir mais bonita. Um pouco de rГmel nos cГlios fecharia o look.
Eu tinha 17 anos, e aquela maquiagem ficou horrГvel aos olhos de meu pai, inadequada para sua garotinha que estava tentando parecer uma moГ§a sedutora.
Irritado, esfregou com força a mão na minha boca, espalhando o batom pelas bochechas para tentar apagar meu trabalho tão cuidadosamente pintado.
Meus olhos comeГ§aram a lacrimejar, e o rГmel borrou minhas pГЎlpebras inchadas de lГЎgrima. Olhei-me no espelho do banheiro e vi a mГЎscara de um palhaГ§o.
Depois de me lavar com um sabГЈo que queimava os olhos, mas que retirou todos os resГduos da maquiagem borrada, finalmente ganhei permissГЈo para sair e fui Г quela tГЈo sonhada festa, com o rosto vermelho e Гєmido, mas sem maquiagem.
NГЈo consegui me divertir.
Como eu queria, naquela Г©poca de adolescente, fugir, ir para longe, partir, viajar, viver sozinha.
Os sonhos, armados de teimosia e força de vontade, às vezes não se tornam realidade. Mas compreendi, naquele dia, onde e quando nascem.
Aos pouquinhos, dia apГіs dia, mГЄs apГіs mГЄs, ano apГіs ano, eu ia aprendendo coisas importantes e adquirindo experiГЄncias necessГЎrias para me relacionar melhor com meus colegas e passageiros com personalidade e caracterГsticas diversas e heterogГЄneas.
Mas também compreendi logo que a organização da minha vida era decidida no fim do mês, quando publicavam a esperada “folha de turnos”, uma planilha aparentemente anônima e fria onde constam as escalas do mês seguinte.
A companhia aГ©rea inseria esse comunicado oficial nos escaninhos pessoais, uma extensГЈo de infinitas caixinhas postais enfileiradas em uma sala no aeroporto digna de filme policial. Hoje o comunicado Г© feito por e-mail.
A “folha de turnos”, que eu contemplava mês a mês, me dava ansiedade, muitas vezes entusiasmo e grandes expectativas, às vezes desilusão por aqueles repousos e férias que eu pedia e nem sempre eram concedidos.
Todos os encontros, compromissos, casamentos de que poderia ter participado, as finais de futebol, os ingressos de primeira fila no teatro, a despedida de solteira da minha melhor amiga, o aniversГЎrio de algum namorado, a ceia de natal, o aniversГЎrio dos meus pais, a semana no chalГ© na montanha, o curso de tango Г s quintas de tarde: era muito difГcil participar disso tudo, e era preciso adaptar-se Г s decisГµes tomadas pelo computador da companhia.
A partir daquele momento, era possГvel aceitar ou recusar convites, combinar encontros importantes, estabelecer horГЎrios estranhos para assistir a aulas, fazer de tudo para chegar a tempo em qualquer lugar, ou entГЈo chegar, mesmo que atrasada, nas reuniГµes de condomГnio; dizer adeus aos torneios de truco, mas, em compensação, ter a “satisfação” de ouvir Gigi Marzullo, cambaleando de sono por causa do fuso.
Havia cerca de dez dias de descanso por mГЄs, enquanto a divisГЈo valia para os outros 20.
Eu, Eva, Valentina e Ludovica sempre esperávamos ter dias e horários de partida diferentes uns dos outros, tanto para ter mais espaço em casa quanto para poder organizar melhor o tempo em nosso principal problema: banhos muito longos.
Era comum que um voo começasse logo cedo, e o despertar costumava ser uma hora antes.
Depois de um café da manhã muito rápido e uma bela ducha revigorante, punha-se o uniforme preparado no dia anterior, certificando-se de que os sapatos estivesses lustrados e que as meias-calças não estivessem desbotadas da máquina.
Grande parte de nГіs tinha um segredo “inconfessГЎvel”: a camisa ficava por dentro dos collants horrГveis – muitas vezes feitos sob medida para evitar o surgimento de veias varicosas e inchaГ§os por causa da pressurização da cabine. SГі assim era possГvel evitar que a camisa escapasse da saia quando levantГЎvamos os braГ§os para organizar as bagagens dos passageiros.
Embaixo da saia éramos uma desgraça!
Organizada a roupa, passГЎvamos a maquiagem, verificГЎvamos se o cabelo estava em ordem e, por fim, os documentos.
Na bolsa de mão, não podiam faltar uma roupa sobressalente, lanterna, o caderno com os comunicados de voo, o manual operacional, meia-calça extra, sapato de salto mais baixo para as rotas mais longas, luvas de pele. No Crew Briefing Center do aeroporto, o lugar onde se reúnem todas as tripulações, começava o briefing em cada uma das salinhas reservadas.
NГіs nos reunГamos para conhecer a tripulação, nos apresentГЎvamos, discutГamos questГµes crГticas do voo, sobre as condições meteorolГіgicas, Г©ramos informados dos aspectos comerciais, sobre o tipo de serviГ§o e sobre os passageiros que estariam no voo.
O enquadramento era quase militar: havia uma hierarquia, e ela devia ser respeitada.
À frente de toda a tripulação estava o comandante, depois o copiloto e, a seguir, o assistente de voo, de acordo com o grau.
Todos os assistentes de voo, no que diz respeito ao serviço prestado e o relacionamento com os passageiros, tinham como ponto de referência o responsável da própria área de trabalho que colaborava com o chefe de cabine, o qual, por sua vez, comandava o andamento do voo e mantinha contato com o cockpit, ou seja, o piloto.
Ao final do voo, cada assistente era submetido a uma avaliação escrita e assinada, onde eram avaliados o profissionalismo, a competГЄncia tГ©cnica, o conhecimento das lГnguas estrangeiras, a assistГЄncia dadas aos passageiros e se a sua aparГЄncia estava em conformidade com as normas.
E foi assim que os anos passaram, voo apГіs voo, encontro sobre encontro, fusos horГЎrios e noites sem dormir, lГnguas diferentes, paГses tГіrridos e gelados, comidas condimentadas e sabores delicados, cГ©us serenos e turbulГЄncias inesperadas.
Конец ознакомительного фрагмента.
Текст предоставлен ООО «ЛитРес».
Прочитайте эту книгу целиком, купив полную легальную версию (https://www.litres.ru/pages/biblio_book/?art=64263032) на ЛитРес.
Безопасно оплатить книгу можно банковской картой Visa, MasterCard, Maestro, со счета мобильного телефона, с платежного терминала, в салоне МТС или Связной, через PayPal, WebMoney, Яндекс.Деньги, QIWI Кошелек, бонусными картами или другим удобным Вам способом.
Если текст книги отсутствует, перейдите по ссылке
Возможные причины отсутствия книги:
1. Книга снята с продаж по просьбе правообладателя
2. Книга ещё не поступила в продажу и пока недоступна для чтения